sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Uma década de novas oportunidades

 

   Ela tinha tudo para dar errado!
   Ainda mal tinha começado a sua juventude e já esta era interrompida abruptamente. 
   Em boa verdade acho que ela tinha tudo para dar certo, mas acabava sempre por fazer as coisas ao contrário.
   Podia ter continuado a ser uma aluna excelente, mas preferiu ser preguiçosa. Não precisava estudar muito para ter notas razoáveis e notas razoáveis chegavam para quem andava a estudar por estudar.        Podia ter terminado o liceu mas no primeiro 11ºano achou que não fazia mal nenhum ficar algumas vezes com os amigos pelo café. Tinha boas notas e os professores iriam perdoar. Correu mal! Leu Os Maias durante as férias da páscoa e quando chegou à escola estava chumbada por faltas. Ela nem gostava muito de ler...Talvez por isso aquele seja um dos livros mais marcantes da sua vida. 
   Durante a primeira fase da sua vida foi assim, vendo passar o tempo. Levava a vida tranquilamente. Não sabia o queria fazer no futuro e isso libertava-a de certas preocupações, como os estudos. 
   Tinha amigos, uns trocos para café e cigarros e não arranjava confusões em casa e na rua. Nada fazia prever o que veio a acontecer.
   Ela achava que mal nenhum lhe podia acontecer, não fazia mal a ninguém e não havia razão para ser castigada. Por vezes brincava mesmo com a sorte. Até ao dia em que o chão se abriu debaixo dos pés e se viu numa queda, desamparada, sem fim a vista…

***
   Os bebés são seres adoráveis e enchem de alegria qualquer casa. No entanto também podem ser um grande problema, uma tragédia, um inconveniente… principalmente quando os pais são jovens e não têm a mínima vontade de partilhar uma casa. Aliás, porque haveriam de pensar em tal coisa, com uma juventude toda para viver?
   Ela tinha tudo para dar certo, mas brincou com a sorte.
  A maior sua maior desgraça é hoje a sua maior alegria. Fonte de inspiração, motivo para viver e lutar por dias sempre melhores, companhia, razão para levar uma vida o mais correcta possível (educar com exemplos e esconder bem qualquer desvio) e o seu maior desafio. Mas nem sempre foi assim…

***
   Depois de se ver em queda livre, adormeceu num sono estranho. Um choque que lhe causou uma inércia total, uma sensação inexplicável. 
   Sem vontade de viver, sem noção de nada, fez tudo que lhe disseram, o que era suposto fazer nestes casos. 
   Bem, o caso dela é como tantos outros e realmente aconteceu o que era suposto. Uma separação… mais tarde. 
   Foram precisos quatro anos para cair no chão e começar a perceber o que se tinha passado com ela.    Estava tudo errado, estava tudo um caos. 
  Durante este tempo todo, a única coisa boa que conseguia ver era o facto de estar empregada, na sua aldeia, a poucos metros de casa e do infantário do filho. Que sorte teve! Nem procurou. Tinha o filho dois meses quando lhe bateram a porta para oferecer trabalho. Trabalho esse que mantém a quase uma década. 

   O Jogo mudou. 

   Agora, tinha tudo para dar errado.
   Ela tinha tudo para dar errado. 
  Podia ser mais uma mãe desesperada, incompreendida, revoltada e amargurada, mas a vida tinha outros planos para ela.
   Ela podia ter dado ouvidos aos mexericos e malditos e enfiar- se em casa a fazer bordados para enfeitar paredes, levar uma vida tranquila, ser invisível e ficar fechada em casa a lamentar-se. Assim ninguém ia falar, ninguém se ia lembrar, ninguém se ia importar. 
   Ela disse, “Basta!! Agora quem cuida da minha vida, sou eu.” Não é um processo fácil quando não se sabe o que se quer.
   Ela podia ficar em casa apática, a fumar cigarro atrás de cigarro, a olhar para as chamas na lareira, a ver a madeira transformar-se em cinza, a ver a sua vida queimar sem tirar proveito nenhum… 
   Ela nem acabou o liceu e isso começava a pesar-lhe na consciência. Senão tivesse chumbado aquele ano por faltas... Podia ter feito o 12ºano sem grandes problemas, mas ficou a um ano de terminar o liceu e isso era a sua marca, o seu falhanço. (agora as metas já tinham alguma importância). Sem estudos, sozinha, com um filho para criar e educar, numa aldeia sem futuro… podia não dar errado mas não ia ser bom de certeza.

   Que futuro a esperava?
  
  Descobriu então que existia uma possibilidade de completar os estudos, algo chamado Novas Oportunidades. Caso aproveitasse ficaria com equivalência ao 12ºano. Nem pensou duas vezes, estava na hora de voltar a aprender e por o cérebro a funcionar.
   Estava tão enganada! Não aprendeu nada de novo. 
   Ela não aprendeu nada de novo, mas esta etapa mudou a sua vida para sempre.
   Como todos os que passaram por este plano, teve de escrever um “livro”, falando da sua vida e suas competências.
  Todo este processo acabou por ser de certa forma terapêutico. Voltar atrás no tempo, mexer em memórias, reviver a sua vida antes de todo aquele pesadelo fez-lhe bem. Também foi fundamental ter alguém a dar-lhe valor e incentivo para acordar para a vida e dar uso às suas capacidades, foi renovador. Ela gosta de pensar como reagiria o professor se soubesse que agora tem um blogue, que gosta de ler e escrever, que saiu de casa e se envolveu na comunidade e já consegue ter um discurso mais claro (sim porque a mente dela é cheia de frases sem ligação, pensamentos desarrumados e não se conseguia exprimir).
   A menina que entrou na sala pela primeira vez sem falar, alheada do mundo, saiu renovada e cheia de vontade de mudar o seu rumo. 
   Ela gostava de ficar sentada à lareira a fumar e contemplar as chamas, mas um dia fartou-se.   Decidiu sair de casa e mostrar-se ao mundo, mostrar que era capaz, que queria deixar uma marca e sentir-se bem na comunidade. Não era nenhuma doida varrida e muito menos coitadinha. Bem, fazia alguns disparates mas era muito mais que isso.
   Ela podia ter ficado sossegadinha em casa a ver Tv com o filho, mas decidiu juntar-se a um grupo de jovens que achava que podia fazer coisas extraordinárias na comunidade; passou a ajudar o pai no grupo coral (duvido que se converta, mas faz o seu papel com muito respeito e empenho); criou com um amigo um grupo para ensinar jovens a tocar viola ( (A)CORDA) e com o tempo foi descobrindo o seu lugar na comunidade. 
  Todas estas tarefas interferiram com a sua vida e foi preciso algum sacrifício e método para não falhar com as suas responsabilidades.
   Durante todo este tempo cresceu imenso. 

***
   Os últimos anos que passaram foram tão confusos… Mudei tanto…
   Também cometi alguns erros e a maioria não me arrependo. Não são eles que me definem. Não sou o que passei e sim o que superei. Fazer as pazes com o passado é fundamental.
   Descobri no meu filho, na música, na leitura e na convivência com os outros, o segredo para me manter firme. Dedicação. Dedicar-me a tudo e todos que gosto, dá-me alegria e energia. Tudo fica mais fácil de suportar e deixamos de inventar problemas. Deixei de ser má companhia para mim.
   Deixei também de fumar e agora já não consigo estar muito tempo a olhar para a lareira, a não ser que me perca a ler um livro. Os livros são a minha nova companhia, terapia e inspiração.
   Descobri há pouco tempo este mundo maravilhoso da literatura e para meu orgulho já contagiei o meu filho (o Pirata)
  Descobri uma nova paixão. Descobri também que é impossível juntar muito dinheiro quando se gosta tanto de livros. Mas não está mal, troquei cigarros por livros.
   Viverei mais anos sem dinheiro, mas terei sempre livros…

Quero agradecer o Fiacha por me desafiar a escrever um texto para o seu blog.
Adicionem!! É um oásis para quem gosta de literatura http://leiturasdofiachaocorvonegro.blogspot.pt/

Decidi falar de mim. 
Raramente o faço, apesar de ter alguma vontade. Não é fácil falar de mim. Não gosto de me queixar e se falo bem de mim, como um caso de sucesso, tenho receio de ser mal interpretada, Mas aceitei este desafio e aproveitei para reviver mais uma vez o passado e fez-me bem. Modéstia a parte, tenho muito orgulho de mim ;)
Obrigado por lerem tudo até ao fim. 

Beijinhos

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